O Maior Monumento Musical ao Holocausto

por Paulo Esteireiro em JM-Madeira




Faz este mês de agosto setenta anos que o músico Arnold Schönberg compôs a oratória “Um Sobrevivente de Varsóvia”, considerada pelo escritor Milan Kundera o “maior monumento que a música dedicou ao Holocausto”. No livro “Um encontro”, Kundera constata que lutámos para que os assassinos do Holocausto não fossem esquecidos, mas que não nos esforçámos para guardar na memória as obras de arte, associadas ao drama dos Judeus do século XX. Para o escritor, esta situação era discordante com a preocupação dos próprios judeus que estiveram no campo de Terezin, onde se encontravam muitos intelectuais, compositores e escritores influenciados por Freud, Mahler, Janacek ou da escola vienense de Schönberg, para quem o “dever de memória eram as palavras-estandarte”.
Este mesmo “dever de memória” é referido por Schönberg como um dos motivos para a criação desta oratória. O compositor considerava que “Um Sobrevivente de Varsóvia” era “em primeiro lugar, um aviso para todos os judeus. Para nunca se esquecerem do que foi feito; para nunca se esquecerem que, mesmo as pessoas que não o fizeram concordaram e muitos acharam necessário tratar-nos dessa maneira. Nunca nos devemos esquecer disso”, escreveu Schönberg em 1948, numa carta, ao crítico musical judeu Kurt List, que havia estudado composição musical com Alban Berg e Anton Webern em Viena.

A inspiração inicial para esta composição surgiu de uma sugestão do bailarino russo Corinne Chochem. O bailarino queria uma obra que prestasse um tributo às vítimas judaicas da Segunda Grande Guerra. A parceria entre Chochem e Schönberg acabou por não se concretizar, mas o músico continuou a desenvolver a ideia autonomamente. Posteriormente, recebeu uma encomenda da Fundação Musical Koussevitzsky para um projeto musical orquestral e Schönberg decidiu, então, em agosto de 1947, realizar esse tributo às vítimas do Holocausto.

Neste enquadramento, é natural que “Um Sobrevivente de Varsóvia” seja uma obra amargurada e ríspida emocionalmente, tal como a realidade que retrata, abordando temas como a divisão de famílias judaicas, o transporte para as câmaras de gás e a contagem das vítimas sob o comando de um sargento alemão. A composição, apesar de ser designada de oratória, tem apenas aproximadamente sete minutos de duração e uma instrumentação invulgar que foge aos modelos dos habituais programas de concertos.

A história passa-se num gueto de Varsóvia, em plena Segunda Grande Guerra, e é contada por um narrador que descreve a experiência no gueto. O dia começa com os soldados nazis a chamarem os judeus para se apresentarem na rua. Um grupo de judeus começa então a alinhar-se em formatura mas gera-se uma situação de alguma desordem e os guardas espancam os judeus – “jovens ou idosos (fortes ou doentes), culpados ou inocentes...”, refere-se na narração, para reforçar o lado aleatório –, que não conseguiram alinhar-se com a rapidez pretendida. Os judeus que ficaram deitados no chão foram considerados mortos pelos nazis e os guardas começaram uma contagem, para decidir quantos seriam deportados para os campos da morte. A obra termina com os judeus a cantarem a oração “Shemá Israel”. Nesse momento, o narrador fica em silêncio e um coro masculino canta o credo hebreu, com um acompanhamento orquestral contrastante de sons opressivos, simbolizando a vitória espiritual dos judeus prestes a morrer sobre o opressor.

Numa época em que há vozes que se erguem e se unem para negar a existência do Holocausto e em que o autoritarismo e os radicalismos ganham força em muitas zonas do planeta, recordar “O Sobrevivente de Varsóvia” constitui também, sem dúvida, um “dever de memória”.

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