7 contributos da música para a poesia

por Paulo Esteireiro em JM-Madeira


No passado domingo tive a oportunidade de participar na 43.ª Feira do Livro do Funchal, num debate intitulado de “Conversas sobre Poesia e Música”. No debate, estiveram presentes os colegas e amigos Sandro Nóbrega, Margarida Pocinho, António Castro, António José Cardoso e Thierry Santos, que partilharam os seus conhecimentos sobre as relações entre música e poesia, com base nas investigações e experiências artísticas que protagonizaram no passado. Seguem-se algumas das minhas reflexões nesse debate, as quais organizei como sete “contributos” da música para a poesia. Para simplificar, considerou-se que o conceito de “letra” equivalia aqui ao conceito de “poema”, apesar de – e esta é uma questão pouco consensual – nem sempre a letra de uma canção poder ser considerada um poema, na minha opinião, devido à ausência completa de componente literária em muitas letras de canções.

Antes de passar aos “contributos” propriamente ditos, creio que é essencial começar por dizer que a “união” entre música e poesia tem sido benéfica para as duas partes. Por um lado, a emoção transmitida pela música torna-se mais inteligível devido à complementaridade trazida pelas palavras; por outro lado, as emoções do «eu poético» são amplificadas, descodificadas ou mesmo renovadas, pelo modo como o compositor dispõe os elementos musicais. Um bom músico, munido de sensibilidade, arte musical e bons conhecimentos literários, consegue «explicar» um poema através da música.

1. “Recriar uma época ou um elemento do espaço geográfico.” A música pode recriar um dado momento histórico ou transportar-nos para um espaço geográfico. Por exemplo, um brinquinho no início de uma música remete o poema que se segue para o espaço geográfica da Madeira; uma música medieval remete-nos para essa época; uma guitarra portuguesa e um fado pode transportar um estrangeiro para Portugal.

2. “Acelerar ou retardar a ação.” A música pode acentuar a velocidade de ação de um episódio do poema, fazendo parecer mais rápido um momento de tensão, ou tornando um momento de espera numa eternidade. Por exemplo, na canção-retrato “Chico Fininho”, de Rui veloso, é realizado um retrato da figura do toxicodependente, que se vulgarizou a partir da década de 1980. O ritmo acelerado da música cria uma atmosfera rápida e ansiosa da ação (Aos sss pela rua acima / Depois de mais um shot nas retretes / Curtindo uma trip de heroína) do mesmo modo que na canção “Porto Sentido”, a música torna a ação muito muito mais lenta e cria um ambiente de contemplação da cidade.

 3.“Antecipar o significado da parte vocal.” A música costuma antecipar o conteúdo do poema, fornecendo informações antes da parte vocal cantar o texto. Por exemplo, a entrada orquestral da famosa “aria” La Donna è Mobile de Verdi cria um sentimento de confiança e de força, tal como o início da conhecida Habanera da ópera “Carmen”, de Bizet, antecipa o lado enigmático, misterioso e sedutor do amor descrito nos versos da “aria”. Assim, antes do texto começar, a música anuncia o conteúdo do que vai acontecer, do mesmo modo que num filme de terror, a música avisa muitas vezes a tragédia que se aproxima.

 4. “Chamar a atenção para a importância dramática de um excerto do poema”. O músico pode também ressaltar os momentos mais importantes do poema, quer criando tensão nos versos mais importantes, quer simplesmente dando destaque pela própria ausência de música num momento-chave. Por exemplo, em “Sixteen Tons”, Johhny Cash retrata a vida dura e miserável dos mineiros, que não ganham o suficiente para pagar os produtos alimentares básicos, na própria loja da companhia da mina que os emprega. Para realçar esta situação, o cançonetista decide interromper a música no verso-chave “I owe my soul to the company store” (“Eu devo a minha alma à loja da companhia”), cantando o verso sem qualquer acompanhamento musical.

5.“Clarificar ou mostrar o estado psicológico de uma personagem do poema.” A música pode igualmente fornecer informações acerca do estado anímico e psicológico de uma personagem, que muitas vezes o poema apenas sugere. Na música “Que força é essa”, Sérgio Godinho, na versão com arranjo de José Mário Branco, reforça o cansaço e o trabalho extenuante, colocando as vozes a clarificar o esforço físico e o cansaço referidos na letra.

 6. “Introduzir elementos que não estavam presentes no poema.” Alguns músicos introduzem “informações” que não se encontram explícitas no poema, através de transformações de elementos musicais. Por exemplo, a música “Innocent When You Dream”, de Tom Waits (utilizada no filme “Smoke” de Wayne Wang), contém um ambiente de carrocel e uma expressão embriagada no canto, que atribui uma ingenuidade e uma vertente ébria que na letra não estão acentuadas.

 7. “Traduzir ou «pintar» musicalmente determinados conceitos ou expressões.” A música pode «pintar» musicalmente conceitos ou expressões que têm pouco a ver com a ação. Em “O Tempo Não Para” de Mariza, o piano traduz a métrica do tempo, para a métrica musical, fazendo com que o piano pareça marcar os segundos a passar.

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