Ainda o Salvador Sobral… o "kitsch" e a dignidade

por Paulo Esteireiro em JM-Madeira

A primeira vitória de Portugal no Festival Eurovisão da Canção tem sido naturalmente muito comentada e festejada, quer pelo facto de ser inédita, quer pelo modo como ganhou: com uma canção que contraria o padrão de uma suposta “canção festivaleira”. A discussão em torno desta fuga ao “padrão” começou logo no dia em que Salvador Sobral ganhou o festival em Portugal. Como todos sabemos, houve um enorme chorrilhar de críticas a favor e contra a canção e, inclusivamente, sobre o próprio músico: “desastre de música”; “produção sem qualidade”; “as características do Festival da Eurovisão não foram respeitadas”; “não se jogou com as regras do jogo”; “falta de presença e carisma do cantor”; etc., etc. Ouviu-se de tudo.


Decidi então ir ver e ouvir a música no Youtube, visto que nem sequer tinha visto o Festival, como provavelmente a grande maioria dos portugueses, há muito afastados deste evento. Confesso que fiquei espantado com a excelente qualidade da música e perplexo com as críticas, embora compreenda um pouco a crítica à produção musical, por esta ser quase inexistente. A produção era realmente do mais simples que se pode fazer: canto, piano e pouco mais (mas mesmo aqui provou-se que, às vezes, “menos é mais”…). Falei então com um amigo próximo – forte crítico das características da canção vencedora – para perceber melhor a sua animosidade contra a canção. Explicou-me que uma canção deste tipo nunca seria aceite noutro festival e que bastaria ver as canções vencedoras do Festival da Eurovisão dos últimos anos, para se perceber isso. Contra-argumentei que era uma balada com uma melodia lindíssima; carregada de uma melancolia característica de algumas músicas da lusofonia; com uma harmonia ao estilo de Bossa Nova; e que cantada pelo Caetano Veloso seria um sucesso “dos diabos” e que o Salvador Sobral não ficava atrás. O meu amigo concordou, mas mostrou-me então, triunfante, as canções vencedoras dos últimos anos, como quem diz: “é isto, meu amigo, que ganha Festivais da Eurovisão”. Em suma, alegria, luzes, batidas fortes, virtuosismos vocais, fogo e dançarinos(as)...

Apesar de agora poder ser eu a dizer, triunfante, que “tinha razão”, creio que toda a discussão estética em redor do que aconteceu é bastante elucidativa de uma certa postura artística kitsch, em que é fácil cairmos e que devemos procurar combater. E kitsch não é aqui entendido como uma questão de “mau gosto”, mas sim no sentido defendido por autores como Milan Kundera, o famoso escritor checo, que definia kitsch como a atitude de “querer agradar a qualquer preço e à maioria” e de se tentar na arte “confirmar aquilo que toda a gente quer ouvir”. O kitsch encarna assim o papel de um dos principais inimigos da arte, porque é a representação do paradigma das ideias feitas, da repetição e do “não-pensamento”. É a estética dos “mass media”. Procura-se seguir o modelo que se julga que agrada à maioria, em vez de defender a verdade artística, a criatividade, a fantasia, a emoção e a genuinidade.

É neste contexto, que as afirmações pouco politicamente corretas de Salvador Sobral, proferidas no momento da vitória são interessantes: “música não é fogo-de-artifício; música é emoção”. Se, por um lado, é pouco politicamente correto criticar os concorrentes a que se acabou de ganhar; por outro lado, é desconfortável para um artista ver modelos “kitsch” a imperar há tantos anos no principal festival da canção europeu. Assim, entendo as suas críticas como uma revolta não conformista contra as ideias feitas e o “kitsch”. E numa época de tanta massificação do gosto, não deixou de ser um fenómeno único e de dignidade o modo como ganhámos este festival. Como disse tão bem Vergílio Ferreira: “é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.” Em arte – e por que não nas relações humanas? – isto é uma absoluta verdade.

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