Para uma audição de... "Uma viola na cidade"

Por Paulo Esteireiro em JM-Madeira

Foi lançado recentemente um novo disco do músico Vítor Sardinha, uma figura singular da cultura madeirense, com o título “Uma viola na cidade”.

O título “Uma viola na cidade” remeteu-me para o fantástico álbum de Carlos de Carmo “Um homem na cidade”, um disco com letras de Ary dos Santos e músicas de grandes nomes como António Victorino D’Almeida (“Fado do Campo Grande”), Paulo de Carvalho (“O Homem das Castanhas”), Martinho D’Assunção, Fernando Tordo, entre outros. Os guitarristas que gravaram o álbum foram Raul Nery, guitarrista da Amália, e o fantástico António Chainho. Que dupla! Nesse disco, o tema principal era uma certa identidade castiça de Lisboa, os ofícios, os bairros, as ruas, etc.


Por sua vez, no disco de Vítor Sardinha, “Uma viola na cidade”, o tema é a viola de arame e a identidade madeirense, na sua vertente orgulhosa por ter participado na construção de um “novo mundo”: o mundo atlântico da lusofonia, que tem sonoridades próprias e que nos distinguem de outros povos. Assim, mais do que um disco, “Uma viola na cidade” procura contribuir para uma identidade coletiva madeirense. Uma identidade aberta ao passado português, na procura de construir pontes culturais com outras regiões do mundo e relembrar que tivemos um papel ativo na construção de outras culturas. Tal como devemos ter orgulho, enquanto povo, de termos fundado e ajudado a desenvolver cidades nos quatro cantos do mundo como o Rio de Janeiro, Salvador, Luanda, Praia, Bissau, Macau, entre outras, também devemos ter orgulho de ter espalhado a nossa língua e os nossos costumes musicais. É este orgulho que Vítor Sardinha coloca em disco, voltando a situar os portugueses da Madeira no mapa deste mundo cultural, através da viola de arame. Um mapa cultural onde a viola de arame encontra-se – além de na Madeira –, em vários pontos de Portugal continental, nos Açores, em Cabo Verde e no Brasil.

Vamos às músicas. O Disco “Uma viola na cidade” é constituído por 24 composições: 20 gravadas recentemente em Estúdio, por Eduardo Gonçalves (MSM Estúdio); 3 gravadas em 1996 por Miguel Camacho; e uma gravada ao vivo por Miguel Camacho e Luís Nunes. No conjunto de músicas selecionadas para este disco, Vítor Sardinha procurou inspiração em aspetos variados, mas que podemos organizar em três eixos principais. Um primeiro grupo de composições são inspiradas em elementos musicais de outros povos, com especial ênfase para o Brasil: “Caminhos da Viola” é inspirada no choro brasileiro, um género urbano com os seus ritmos sincopados, cromatismos e passagens melódicas nos baixos; “Fortaleza”, num estilo igualmente brasileiro, mas com sonoridades mais rurais ou, se assim podemos dizer, sertanejas; “superstição”, uma música muito energética ritmicamente, com traços de funk e de música sertaneja, num estilo que poderemos apelidar de funk-sertanejo; e “Andaluza Magrebine”, uma composição onde se procura imitar sonoridades andaluzas, com efeitos árabes, no tipo de ornamentação, dedilhados e sequências harmónicas de acordes paralelos com notas pedais, alternadas com secções de rasgados e ritmos energéticos.

Um segundo grupo de músicas tem inspiração em elementos da própria “geografia sentimental” de Vítor Sardinha, principalmente relacionados com aspetos geográficos ou históricos da madeira: “Pavão e Victoria”, onde se alude a espaços de entretenimento históricos madeirenses, como foram os Casinos Pavão e Vitória; “Do outro lado do mar”, onde o tema do mar serve de título a uma música sonhadora, repleta de dedilhados compostos por acordes com notas agregadas; “Rabaçal”, o local icónico do turismo e da paisagem madeirense inspira uma das mais belas músicas compostas para viola de arame; “Ilhas Afortunadas”; e “Águas mansas”, uma balada com uma das músicas mais delicadas e melodiosas do disco.

Um terceiro grupo de peças são inspiradas em melodias da música tradicional madeirense. Enquanto os dois grupos de peças acima referidos são mais ricos harmonicamente e ritmicamente, este terceiro grupo mantém essas características, mas é mais melodioso, sendo constituído por músicas que já fazem parte do cânone da música tradicional regional, criado nas últimas décadas: “Canção de Embalar”, “Baile da Ponta do Sol”, “Mourisca do Campanário”, “Baile dos Calções”, “Charamba”, “Mourisca alla Moda” e “Ladrão do Negro Melro”.

A complementar a parte musical, o disco tem um breve texto de Vítor Sardinha sobre a viola de arame, demonstrando assim também a faceta de músico-investigador, sempre preocupado em saber mais sobre as raízes dos instrumentos que toca. O texto apresenta uma síntese das principais ideias sobre este instrumento e algumas informações de cariz ensaístico, que têm o mérito de contribuir para a discussão e o aumento do debate em torno da candidatura da viola de arame a património cultural material e imaterial da Humanidade. Ao compor este álbum, o Vítor Sardinha coloca a Madeira no centro desse debate.

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