Em busca da criação de um património espiritual madeirense

por Paulo Esteireiro em JM-Madeira



Foi publicada recentemente uma edição singular no panorama da música madeirense: o CD “Música Tradicional Madeirense. Antologia. 20 anos”.

Trata-se de um CD duplo que reúne uma seleção de 20 músicas de quatro grupos que se inspiraram na música tradicional – Xarabanda, Banda D’Além, Encontros da Eira e ALMMA – e do instrumentista e compositor especializado em cordofones tradicionais madeirenses, Vítor Sardinha. As músicas aqui presentes foram gravadas no Paulo Ferraz Studio, ao longo de 20 anos, e permitem compreender as diferentes sonoridades criadas na Madeira em redor da música tradicional no pós-25 de abril.

Ao nível musical e estético, as músicas presentes neste disco podem considerar-se ramificações de músicos e grupos de Portugal Continental tais como Zeca Afonso, Júlio Pereira, Brigada Victor Jara, Vitorino Salomé, Né Ladeiras, Quadrilha, entre muitos outros nomes da música urbana com inspiração regional, que marcaram a música popular portuguesa nas últimas décadas.

O ponto de partida dos grupos e os músicos madeirenses presentes nesta antologia é o mesmo. Ambos veem no cancioneiro e nos instrumentos tradicionais um testemunho e sonoridades que refletem a vida, os sentimentos, as aspirações e as emoções do povo madeirense. Assim procuram inspiração nestas fontes para a criação de uma música de cariz regional, na tentativa de criar um património espiritual do arquipélago madeirense.

Além dos cordofones tradicionais madeirenses – braguinha, rajão ou viola de arame –, os instrumentos utilizados incluem normalmente: o bandolim, o violino, a viola-francesa (guitarra clássica), a flauta transversal e a de bisel, o acordeão, o baixo elétrico e a percussão tradicional. De modo a afastar da sonoridade mais comercial, evita-se normalmente a guitarra elétrica e a bateria convencional – o que, por exemplo, nem sempre acontece nos grupos congéneres do continente. O sintetizador aparece pontualmente em algumas músicas, mas tem sido um instrumento menos relevante neste contexto.

Apesar do ponto de partida destes músicos ser semelhante, a chegada musical e estética é muito rica e variada, sendo audível, nos arranjos musicais, os diferentes caminhos percorridos nesta antologia. Uma das sonoridades típicas neste álbum são os arranjos que: partem da melodia tradicional; criam um acompanhamento com os cordofones tradicionais (seja rasgado ou arpejado); incluem introduções e interlúdios instrumentais em que tem destaque melódico a flauta transversal, o violino e o bandolim (ou em músicas mais recentes o acordeão); têm partes de baixo elétrico com intervenções melódicas de relevo; uma percussão tradicional ligeira, marcada pelo bombo e outros pequenos instrumentos acessórios; e coros a reforçar a melodia, maioritariamente a uma ou duas vozes, embora pontualmente com excertos que podem ultrapassar as três vozes polifónicas. Nesta antologia é possível encontrar este modelo em algumas músicas dos grupos Xarabanda, Encontros da Eira ou Banda D’Além, como por exemplo a “Viuvinha”, “A história da velha da cacalhada”, a “Cantiga da Erva”, “Mourisca” ou “O anel”.

Também é possível encontrar baladas lindíssimas, com acompanhamentos harmónicos de belo efeito, inspiradas em melodias tradicionais. São exemplo disso a “Cantiga de Embalar”, com arranjo de Vítor Sardinha (que constrói aqui um acompanhamento harmónico inspirado na canção norte-americana de jazz, cujo tipo de harmonia foi seguido por exemplo na bossa nova do Brasil), “Tocador da Viola”, do grupo Banda D’Além (com uma harmonia muito bem enquadrada que acompanha magistralmente a voz expressiva de Mário André) ou “Menina que estás à Janela”, do grupo Xarabanda, cujo acompanhamento expressivo e virtuoso de guitarra clássica, transforma o arranjo desta canção numa das verdadeiras pérolas deste movimento de música urbana com inspiração na música regional.

A música do grupo ALMMA e as músicas instrumentais de Vítor Sardinha fogem um pouco ao estilo que centra a música na expressividade da melodia da canção regional. Vítor Sardinha centra sua música na sonoridade dos cordofones tradicionais, aplicando os seus conhecimentos de música clássica, de jazz e de estilos populares ao serviço da criação de obras originais, onde a inspiração é variada: desde a música brasileira (em “Terras de Vera Cruz”); passando por sonoridades com notas agregadas num estilo guitarrístico mais livre em “Águas Mansas”; até “Ilhas Afortunadas”, com harmonias modais arrojadas e uma instrumentação mais rica. O grupo ALMMA aparece neste disco como um grupo algo extravagante, visto que são músicas de autor e não propriamente tradicionais, em que se procura: sonoridades experimentais e tradicionais celtas, em “Amistício”; sonoridades energéticas na viola de arame a um estilo mais brasileiro, em contraponto a secções com melodias mais ligeiras lideradas pelo bandolim, em “Aramaria”; a mais futurista “A saudade está de luto”, onde tem destaque o sintetizador, as vozes sem letra utilizadas como um instrumento musical, alternando com secções cantadas apenas acompanhadas com percussão; ou “Sete Pecados”, com um estilo vocal e um acompanhamento de guitarra clássica lembrando, um pouco, um estilo próximo ao grupo Madredeus.

Uma última palavra para o patrocinador deste disco, a Direção Regional de Cultura, que tem vindo a apostar na publicação e divulgação do repertório de cariz tradicional, compreendendo, e bem, a importância do trabalho criativo realizado pelos artistas presentes nesta antologia.

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