Para uma audição de.... "As cores do meu rajão"

por Paulo Esteireiro em Jm-Madeira


O facto de ser complicado, numa região com as características da nossa, escrever textos críticos tem várias consequências negativas, para a nossa progressão em diferentes campos do conhecimento. Uma das principais consequências da ausência de crítica especializada, nomeadamente no domínio das artes, é o facto de muitas vezes passarem despercebidas certas obras artísticas de relevo, para a nossa atividade cultural, nos meios da comunicação social. Uma dessas obras é, sem qualquer dúvida, o CD “As cores do meu rajão” do músico e professor Vítor Sardinha.

Vítor Sardinha é um músico raro na Madeira, por ser bastante completo. Escreve sobre o que faz, sobre a classe que integra – os músicos – e tem uma formação e uma prática musical admiráveis. Junta a formação clássica do conservatório, aos conhecimentos de harmonia de jazz, às técnicas guitarrísticas da música pop e consegue fazê-lo utilizando o rajão, um dos instrumentos que faz parte das tradições da Madeira há mais de 100 anos!

“As cores do meu rajão” contém 28 peças musicais, tocadas a solo, fazendo um percurso histórico que vai desde o final do renascimento (século XVI) até à atualidade. Para os amantes unicamente de canções e de música de dança – talvez a esmagadora maioria das pessoas que ouve música – este disco de música exclusivamente instrumental pode trazer uma maneira nova de olhar para a arte musical. As peças são todas de curta duração, com uma beleza única – captada bem por uma boa interpretação técnica e expressiva– e um conteúdo que reflete bem a identidade madeirense e portuguesa. Que conteúdo é esse? E, já agora, por que motivo “reflete bem a identidade madeirense e portuguesa”? Em suma, quais as diferentes facetas, presentes neste disco, que nos distinguem no plano mundial e que de certo modo nos caracterizam? Primeiro, o nosso lado europeu e cosmopolita está bem presente neste disco, nas músicas renascentistas, barrocas, clássicas e românticas aqui interpretadas e que refletem também a nossa educação internacional, visto fazerem parte da formação das nossas escolas especializadas de música (por exemplo, ouça-se as faixas “Bourré” de N. Valet, “Menuet em Sol” de J. S. Bach, “Danse” de M. Carcassi ou “La Donna e Mobile” de G. Verdi). Vítor Sardinha toca de forma muito clara todas estas peças de música clássica, juntando-lhe aqui e acolá um rasgado ao seu gosto, no meio das polifonias renascentistas e barrocas, tocadas sempre com um som claro, cuidado e elegante. É de realçar que uma das principais ideias do músico madeirense é aqui mostrar a aproximação entre a guitarra barroca e o rajão – no formato do instrumento, no número de ordens de cordas (cinco em ambos os instrumentos) e na afinação –, demonstrando que é possível tocar no instrumento tradicional da Madeira este repertório barroco.

Segundo, os nossos entretenimentos típicos preferidos estão bem perceptíveis nas danças tradicionais madeirenses aqui tocadas (“Mouriscadas” e “Mourisca Alla Moda”) e nos fados (“Fado Antigo” e “Lisboa Antiga). O arranjo de Vítor Sardinha da “Mourisca Alla Moda” é, por exemplo, uma verdadeira pérola. Pessoalmente, entre as danças tradicionais da Madeira, considero que esta é uma das mais divertidas e emblemáticas, sendo a versão presente neste disco uma autêntica maravilha (conheço várias adaptações desta música, entre as quais uma minha, e considero a do Vítor Sardinha um verdadeiro tesouro).

Terceiro, a vertente turística da Madeira está aqui refletida na música ao estilo swing, tocada nos hotéis madeirenses, ao longo de décadas, para os turistas anglo-saxónicos, que são uma das áreas em que Vítor Sardinha é mais original neste contexto da música para cordas dedilhadas a solo (Por exemplo, “All of Me”, “Ain’t She Sweet”, “I Love Paris”, “Bye Bye Black Bird”).

Finalmente, a nossa história de emigração, aqui representada pela ligação entre ukulele e rajão, na música “Hawai Blues”, um original de Vítor Sardinha, que é a peça que encerra o disco. Assim, além da ponte que Vítor Sardinha realiza entre a guitarra barroca e o rajão, o músico madeirense termina o disco fazendo uma segunda ponte musical, desta vez entre o rajão madeirense e o ukulele havaiano (as primeiras quatro cordas do rajão têm a mesma afinação que o famoso instrumento do Hawaii, que tem evidentes raízes no braguinha e no rajão da Madeira).

A complementar a gravação, o disco tem um breve texto de Vitor Sardinha sobre o rajão, demonstrando assim também a faceta de músico-investigador, sempre preocupado em saber mais sobre as raízes dos instrumentos que toca. O texto apresenta uma síntese das principais ideias do músico sobre este instrumento e algumas informações de cariz ensaístico, que têm o mérito de contribuir para a discussão e o aumento do debate em torno do rajão, destacando-se aqui a proposta de uma terceira ponte musical do rajão, desta vez com instrumentos de regiões espanholas que utilizam afinações semelhantes (Timple, Guitarrillo, Guitarro, Guitarrico, Requinto, etc.).

Pela negativa, não há bela sem senão, apenas considero que algumas (poucas) peças poderiam ter sido gravadas com mais calma e tempo, visto terem algumas notas mal pisadas – o que num disco desta qualidade e com as tecnologias atuais poderia ter sido evitado –, embora isso não influencie nunca a expressividade da música. Em suma, um disco altamente recomendável e que não deve passar despercebido.

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