Para uma audição da... 9.ª Sinfonia

Numa época em que paira uma sombra sobre o futuro da Europa e em que o risco de desintegração do projeto de união europeia está mais alto do que nunca, nas últimas décadas, escolhi abordar um pouco da história e do conteúdo da Sinfonia n.º 9 de Beethoven ou, como é normalmente designada em português: a 9.ª Sinfonia. Esta obra tem um papel cultural muito relevante e é, desde 1972, o hino oficial do Conselho Europeu, tendo a sua entidade sucessora na atualidade, a União Europeia, mantido esse estatuto à obra de Beethoven, por considerar que esta composição representa os ideais de liberdade, paz e solidariedade – ideais que a Europa e as suas instituições ambicionaram prosseguir na sua fundação e nos seus principais tratados.

É uma das obras musicais mais conhecidas e tocadas da música clássica no mundo inteiro. Apesar disso, é natural que a maior parte das pessoas apenas conheça a parte do hino – nem que seja por terem tocado a melodia na flauta de bisel, quando tiveram educação musical no ensino básico – e desconheçam o resto da sinfonia e, inclusivamente, o próprio conteúdo da letra.

De qualquer modo, o que se pretende aqui transmitir é que a 9.ª Sinfonia é muito mais do que o Hino à Alegria. Com mais de uma hora de duração, é a maior sinfonia de Beethoven e uma das obras-primas musicais de sempre da humanidade. Quando em 2013 foi vendido um dos manuscritos originais desta sinfonia pelo astronómico valor de 3,3 milhões de dólares (!), Stephen Roe, um dos responsáveis da Sotheby’s de Londres – a empresa que mediou a venda –, explicava o elevado valor alcançado, pelo facto da sinfonia ser “um dos maiores feitos do homem” ao nível de obras como Hamlet ou o Rei Lear de Shakespeare.

Concluída em 1824, a 9.ª Sinfonia é o primeiro exemplo de uma sinfonia de um compositor de renome a incluir partes vocais, sendo por isso considerada uma sinfonia coral. O texto escolhido por Beethoven para ser cantado foi retirado do poema de Friedrich Schiller “Ode à Alegria”, escrito em 1788. O compositor utilizou o poema no quarto e último andamento da sinfonia e é exatamente este andamento, um dos motivos para esta obra ser um marco na história da humanidade. Neste andamento final, Beethoven procurou representar musicalmente uma irmandade universal entre todos os homens, sendo possível concordar com o musicólogo Charles Rosen quando este afirma que este andamento constitui uma sinfonia quase autónoma dentro da própria 9.ª sinfonia. No total, uma atuação típica deste andamento demora 24 a 25 minutos, que é praticamente o tempo de duração, por exemplo, da totalidade dos quatros andamentos da primeira sinfonia de Beethoven, apresentada publicamente em 1800.

Este andamento final da 9.ª Sinfonia está organizado por secções que são quase programáticas, no sentido de serem extremamente descritivas. O andamento começa com uma secção tempestuosa, descrita por alguns autores como uma “fanfarra dos horrores”, a qual é interrompida por uma secção em que o compositor utiliza os violoncelos e contrabaixos quase como uma fala, em estilo recitativo. Nesta secção, Beethoven cita e depois rejeita os temas musicais principais dos três primeiros andamentos da 9.ª Sinfonia, recusando cada um dos temas desses andamentos, através da ação musical dos violoncelos e contrabaixos: primeiro rejeita o tema algo enigmático do primeiro andamento (Allegro ma non troppo, un poco maestoso); depois recusa o tema de cariz irónico e sombrio do segundo andamento (Scherzo: Molto vivace); e, finalmente, rejeita o tema doce e cantável do terceiro andamento (Adagio molto e cantabile).

Após a recusa dos temas, Beethoven introduz então o tema principal do hino à alegria pelos mesmos violoncelos e contrabaixos que recusaram os temas anteriores. O tema vai sendo progressivamente aceite pela restante orquestra, servindo inclusivamente de base para uma série de variações pela totalidade da orquestra.

Quando tudo parece estar bem e o tema da alegria já foi aceite pela orquestra, estranhamente regressa a “fanfarra dos horrores” do início do andamento. Esta passagem é então interrompida e Beethoven introduz aqui pela primeira vez o canto, através de um cantor solista (baixo) que sugere a todos que cantem agora sons mais alegres. O tema principal da alegria é então recuperado por cantores solistas e pelo coro, que cantam com variações musicais o texto da “Ode à Alegria” de Schiller, onde são realçados valores como a alegria, a amizade, a natureza e a irmandade entre todos os homens.

A secção seguinte é das mais curiosas e apesar da sua simplicidade é das mais significativas: uma variação do hino à alegria em estilo marcial de uma marcha turca, os principais inimigos do império austríaco durante séculos. Beethoven pega então no tema do hino à alegria e adapta-o ao estilo musical do principal inimigo, numa demonstração da união entre todos os povos. Segue-se novamente o Coro a cantar o tema da alegria, agora com variações dos violinos e, quando tudo parece terminado, Beethoven introduz um segundo tema principal de cariz religioso: o tema do pai celestial, juntando aos valores da amizade, da alegria e da natureza, o valor da espiritualidade e da religião. O tema acaba com o coro a cantar notas sustentadas nos agudos durante longos compassos, seguindo-se um dos momentos musicais mais bonitos da história da música: uma dupla fuga em que Beethoven funde o tema da “alegria” com o tema do “pai celestial”, seguindo-se várias secções conclusivas apoteóticas.

Para terminar, sinto ser importante referir que, enquanto para muitos artistas mais recentes se tornou central a tese da arte decadente como reflexo de uma sociedade decadente, Beethoven compôs a sinfonia n.º 9 como uma obra de esperança e de união entre os vários povos, numa época realmente decadente, marcada por guerras e por uma grande incerteza na Europa (como foi o primeiro quartel do século XIX). Tal como esta sinfonia serviu de esperança para muitos, espero que a Europa continue a honrar as suas promessas de união e solidariedade entre os povos e que consiga honrar a música que lhe serve de hino e símbolo político.

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