Ouvi, mas não li

por Paulo Esteireiro (JM-Madeira)

Num país como Portugal, em que as taxas de iletrados – formais ou funcionais – são cronicamente elevadas e em que os indicadores de aquisição e leitura de livros e jornais ainda estão muito abaixo das médias europeias, é natural que muitos dos aspetos culturais que nos identificam enquanto povo tenham passado por transmissão oral, de geração em geração. Considero particularmente interessante observar a quantidade de conhecimentos que recebemos por transmissão oral e que possivelmente a esmagadora maioria de nós nunca teve oportunidade de ler ou encontrar impressa em documentação escrita.

Por exemplo, enquadra-se nesta cultura transmitida oralmente ao longo de gerações, sem um sistema de escrita, áreas essenciais da nossa identidade coletiva e pessoal, tais como regras de educação e relacionamento social, acontecimentos históricos e o grande campo da literatura oral, onde podemos encaixar um conjunto alargado de domínios relevantes da nossa cultura tradicional, mas também urbana: contos e lendas, provérbios, rezas, canções, poesia e até anedotas.

É sabido que a literatura escrita é habitualmente muito mais valorizada do que a oral. No entanto, a literatura oral contém uma riqueza que nem sempre é passível de ser apropriada pela literatura escrita: esquemas de memorização diversificados que facilitam o improviso; acentuações que facilitam a transmissão oral; metáforas e imagens fortes que contribuem para a memorização; a síntese do essencial e a desvalorização do acessório; e até vocabulário inexistente nos dicionários regulares.

Não é por acaso que temos um património de literatura oral tão rico e diversificado. Somos criaturas algo caóticas, cheias de contradições, sentimentos complicados, ambições, esperanças, anseios e medos. Pior que tudo, temos de passar a vida a relacionarmo-nos uns com os outros. É por isso que necessitamos de todas estas componentes da literatura oral, para melhorar os nossos relacionamentos. São séculos e séculos de conhecimentos transmitidos oralmente e onde a capacidade de memória filtrou os principais saberes úteis para a nossa sobrevivência em grupo.

Veja-se o caso dos provérbios, que conseguem ser assimiláveis e passar uma mensagem de forma contundente, e simultaneamente poética e direta, porventura melhor que muitos manuais famosos de autoajuda: desde conselhos para não iniciar conflitos desnecessários em “Quem semeia ventos, colhe tempestades”; passando pela sugestão de não fazer piadas que resultem em más interpretações, em contextos mais formais, explícita no provérbio “Mais vale cair em graça do que ser engraçado”; ou um dos meus preferidos, sobre a importância de evitar relacionamentos mais íntimos, por assim dizer, em contexto de trabalho – “Onde se ganha o pão, não se come a carne”. Pura poesia e psicologia.

No domínio dos contos e lendas, temos igualmente um património cultural e identitário rico, embora os contos tradicionais madeirenses estejam muito esquecidos nas escolas. Fui até informado de um caso de um professor que foi criticado por ensinar contos, lendas e poesias tradicionais madeirenses aos alunos. Assim, pode-se dizer que houve importantes recolhas no passado nesta área, mas é lamentável que lendas madeirenses de beleza moral e literária como “A Levada da Velha”, por exemplo – onde se descreve a relevância da generosidade de uma geração para a seguinte –, sejam preteridos para contos internacionais de qualidade literária e moral por vezes duvidosa.

A área da música também apresenta um património oral relevante e onde é possível encontrar pontes culturais, por exemplo, com outras regiões de Portugal, de Espanha e do Brasil. O cancioneiro tradicional madeirense – o conjunto de canções passadas oralmente de geração em geração, na Madeira – está a ser trabalhado pela Associação Musical e Cultural Xarabanda há já algumas décadas e será provavelmente editado em breve. Nas canções tradicionais encontramos algumas das nossas brincadeiras e jogos, a nossa religiosidade, as atividades amorosas, as danças, as histórias dramáticas que nos marcaram enquanto povo e outras atividades centrais do nosso quotidiano (cantigas de embalar, de trabalho rural, etc.).

Todo este património de literatura oral é essencial proteger e passar às novas gerações através das famílias e das escolas, preferencialmente no contexto original de transmissão oral e não apenas através dos livros. Entre os principais objetivos de uma política cultural e educativa, destaca-se o da conservação da memória e da identidade nacional, que para mim é tão importante como a democratização do acesso dos cidadãos aos bens culturais ou a promoção da liberdade de criação.

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