Educar para a discórdia

por Paulo Esteireiro | no JM-Madeira



Um dos mais relevantes filósofos do século XX, o austríaco Karl Popper, argumentava que o crescimento do conhecimento dependia inteiramente da discórdia e do confronto de ideias. Acrescentava ainda que a única atitude aceitável para atingir a verdade era através do diálogo e da confrontação de argumentos, por meios não violentos, naturalmente. No campo da política isso significava que cada um devia, humildemente, aceitar o risco de ver as suas propostas serem recusadas por outros, no confronto de ideias ou projetos.

É fácil fazermos o paralelo com o nosso quotidiano e concluir que, de igual modo, é essencial sabermos aceitar que as nossas propostas nem sempre são as melhores e que nem sempre teremos razão. Isto serve para uma discussão no trabalho, no casamento, numa reunião de amigos, num passatempo coletivo, etc. Até é comum ouvirmos dizer que se “discutem ideias e não pessoas”. Parece realmente simples, mas a realidade demonstra-nos o contrário.

Numa perspetiva social, o cultivo desta postura racional e humilde nos diferentes grupos da nossa sociedade – artísticos, desportivos, religiosos, políticos, etc. – é um dever moral de todos nós e creio que a história e a atualidade já nos ensinaram o suficiente sobre a importância das pessoas moderadas e racionais prevalecerem sobre os grupos mais radicais e obscurantistas (que não são exclusivos da religião). Tal como uma guerra militar destrói um povo, também uma guerra de ideias violentas, mal conduzida, pode destruir internamente um projeto cultural ou desportivo relevante, por exemplo.

Infelizmente, pelo que vamos lendo nas redes sociais ou nos comentários de leitores nos sites jornalísticos e, inclusivamente, de alguns comentadores nos meios de comunicação social, ainda estamos longe de sabermos lidar com a discórdia e com a confrontação de ideias. Além de uma falta de tolerância com a diferença e do repetido recurso ao insulto e à calúnia anónima, é igualmente frequente observar-se uma forte desonestidade nas argumentações utilizadas. E isso tem graves consequências na manipulação da opinião coletiva, que ainda está longe de ter enraizado culturalmente a importância da justiça salomónica, de ouvir as duas partes – ou até de saber escolher entre duas opções (Qual a mais racional? Qual a melhor para os interesses coletivos?).

Esquecendo os casos mais primários da calúnia e do insulto fortuito, fico principalmente apreensivo – enquanto cidadão preocupado com o futuro coletivo da comunidade de que faço parte –, com a argumentação desonesta intencional. A meu ver, podemos optar por diferentes formas de estar e de intervir na vida pública. Por um lado, há quem se sustente em convicções morais, argumentos lógicos e em valores centrados no conhecimento e, por outro lado, há quem se dedique exclusivamente a promover a opinião do grupo a que pertence, custe o que custar. Os primeiros sustentam as suas intervenções na consistência e na honestidade intelectual e a sua opinião não depende apenas de circunstâncias conjunturais. Baseiam as suas afirmações em argumentos claros e abertos à discussão. Os segundos são vendedores de interesses pessoais e de determinados grupos e selecionam a informação segundo a conveniência do momento. As suas intervenções na vida pública têm como principal propósito encobrir a argumentação e manipular emocionalmente o conflito. Este tipo de manipuladores têm capacidade analítica e argumentativa, mas estão comprometidos com uma posição inicial de onde não saem. São “soldados de um grupo”: o que o grupo defender, eles defenderão. Os primeiros debatem ideias, constroem argumentos com fontes, dados, provas e exemplos, seguindo as regras da lógica e da honestidade intelectual. Os segundos deturpam ou descontextualizam os factos, geram emoções, procuram ridicularizar, criam ruído na discussão, incentivam ódios pessoais. São pessoas impossíveis de convencer com argumentos e dados.

Uma sociedade que tem dificuldade em saber discordar é uma sociedade que tem igual dificuldade em crescer e aprender. Tal só é possível cultivando valores como: a sinceridade; a honestidade; a procura da verdade; a defesa da justiça; o respeito pelo outro; a humildade na aceitação de erros; a defesa da argumentação lógica; ou a abertura a soluções alternativas. Às vezes o atraso de um povo pode ser mais cultural do que tecnológico.

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