Chordophonia

(Entrevista de André Santos para o seu blog )



André Santos - Antes de mais, podes falar um pouco de ti, do teu percurso musical e quando e porquê te surgiu o interesse pelos cordofones madeirenses: Braguinha, Rajão e Viola D'Arame ?
Paulo Esteireiro - Iniciei os estudos musicais aos 3 anos de idade na Academia de Música da Liga dos Amigos de Queluz, tendo começado na iniciação musical infantil. Depois estudei piano a partir dos 6 anos e aos 12 mudei para guitarra clássica. Além desta academia, estudei ainda na Escola de Música Nossa Senhora do Cabo (Linda-a-Velha), no Conservatório de Sintra e mais tarde na Academia de Amadores de Música (Lisboa), onde frequentei o 8.º grau de guitarra. Fiz depois estudos superiores na área da musicologia e concluí os graus de licenciatura (1999), mestrado (2004) e doutoramento (2012), na Universidade Nova de Lisboa.    Depois de trabalhar na área da música em Lisboa, nos Açores (Ilha Graciosa) e em Bragança, vim para a Madeira trabalhar no então Gabinete Coordenador de Educação Artística onde percebi que ensinavam estes instrumentos tradicionais. Fiquei especialmente fascinado pelo livro editado pelo Prof. Manuel Morais com obras do século XIX de Candido Drumond de Vasconcelos e pelo virtuosismo dos professores Roberto Moritz e Roberto Moniz. Conheci então o construtor Carlos Jorge Pereira e encomendei-lhe um braguinha. Logo nesse ano, tive um convite do Rui Camacho da Associação Musical e Cultural Xarabanda para compor para este instrumento. Fui fazendo composições e explorando o potencial do braguinha e, anos mais tarde,acabei por editar um livro de partituras como forma de contributo pessoal para a renovação do repertório deste instrumento. Creio que seria essencial ter uma coleção, onde diferentes autores publicassem um conjunto de composições de qualidade média e superior, de modo a renovar o repertório dos cordofones. Esta é uma das melhores estratégias para divulgar na Madeira, em Portugal Continental e no estrangeiro estes instrumentos. Por exemplo, o livro que publiquei, apesar de despretensioso, recebeu elogios de pessoas do Brasil, de França ou de Inglaterra. Entre essas pessoas, estava por exemplo um aluno da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que se encontrava em 2014 a tirar o curso superior de cavaquinho e que disse que o seu professor, o famoso cavaquinista Henrique Cazes, ficou contente por saber que havia obras de qualidade editadas em partitura em Portugal. Agora, se tivéssemos um conjunto alargado de compositores para este instrumento, a qualidade subiria e conseguiríamos maior projeção dos instrumentos da Madeira.

AS - Há uma dúvida pertinente em relação aos cordofones, a denominação 'madeirenses' existe porque são originários da Madeira ou porque, embora oriundos de outro sítio, são de facto uma marca na tradição madeirense ?
PE - Estes instrumentos são sem dúvida uma marca da Madeira e os madeirenses sentem-nos como sendo instrumentos típicos da sua região e parte da sua identidade. Claro que esta designação de “madeirenses” aplicada à viola de arame e ao rajão é bastante recente, sendo defendida esta relação com a Madeira principalmente a partir dos trabalhos de Carlos Santos na década de 1930. Já o caso do braguinha parece ser ligeiramente diferente. Desde a primeira metade do século XIX há relatos de estrangeiros a referir-se ao machete (designação dada ao braguinha na época) como sendo um instrumento típico da Madeira.  A verdade é que estes cordofones têm relações de familiaridade evidentes com outros instrumentos tais como o cavaquinho, o timple, o ukulele ou as violas de arame espalhadas pelo mundo. São instrumentos que apesar de terem provavelmente raízes fora da Madeira, aqui tiveram um grande protagonismo na vida social, constituindo variantes com especificidades que são exclusivamente madeirenses na atualidade. Acima de tudo, estes instrumentos são importantes por permitirem fazer pontes musicais com outros pontos do globo onde os portugueses e os espanhóis tiveram forte influência cultural.

É possível traçar uma espécie de árvore cronológica destes instrumentos? As suas origens e quando chegaram a Portugal e especificamente à Madeira ?
É muito difícil estabelecer essa árvore cronológica, a qual está ainda por realizar com rigor. É sabido que o machete era tocado na Madeira na primeira metade do século XIX e terá tido influências dos machetes construídos no continente, embora não se saiba se via Lisboa, Coimbra ou Braga. Pessoalmente, acho que há uma forte relação com Lisboa, mas é apenas um palpite. Quanto ao rajão, o número de cordas e afinação aponta para uma origem espanhola, tendo surgido na Madeira aparentemente apenas na segunda metade do século XIX, mas é difícil também precisar. O que é certo é que antes dessa altura não encontramos referência ao termo rajãonos periódicos. O mesmo acontece com a viola de arame, que não é referida nos jornais da Madeira em todo o século XIX. É um mistério a sua introdução na região. É sabido que a viola aparece nas tunas que surgiram no final do século XIX e que se espalharam no primeiro quartel do século XX pela Madeira, tendo possivelmente sido difundido popularmente na região através destes agrupamentos.

AS - Em que estilos e contextos musicais são/foram os cordofones maioritariamente utilizados e que outras fusões são dignas de destaque ? 
PE - O Braguinha foi utilizado no século XIX para tocar a música de salão, principalmente danças – valsas, quadrilhas, polcas, etc. - e alguns temas e variações muito virtuosos, de estilo brilhante. É impressionante o facto de terem sobrevivido centenas de composições para machete desse período. É um património muito rico da Madeira e um motivo de orgulho para todos os madeirenses. No século XX, quando é abandonado nos salões, começa a aparecer nas tunas e em contexto popular, mas integrado nos géneros musicais da tradição popular e naturalmente sem qualquer registo em partitura. Quanto ao rajão e viola de arame, participamprincipalmente em contexto popular, integrados em tunas, no charamba ou em pequenos agrupamentos. Atualmente, na última década, devido ao trabalho dos professores Vítor Sardinha – no rajão e na viola de arame – e Roberto Moritz – no braguinha, principalmente, mas também no rajão e viola de arame – estes instrumentos têm sido utilizados de forma mais rica, com exploração das suas potencialidades em diferentes géneros musicais (jazz, rock, tradicional, blues, pop, etc.). Salienta-se também o trabalho do professor Roberto Moniz que tem ensinado uma grande variedade de estilos a um conjunto muito diversificado de alunos e que tem deixado um legado de grandes tocadores, sendo um excelente professor que sabe aproveitar muito bem o potencial dos alunos. Tem uma dedicação impressionante, a qual lhe tem trazido bons resultados.

AS - Ultimamente existe um crescente interesse por estes instrumentos. A que se deve este despertar? 
PE - Este despertar deve-se essencialmente ao trabalho do ex-Gabinete Coordenador de Educação Artística que começou a ensinar estes instrumentos nas Escolas da RAM e na Divisão de Expressões Artísticas (DEA). Isto permitiu criar lugares de professor de instrumentos tradicionais que foram ocupados na DEA pelos principais músicos: Vítor Sardinha, Roberto Moniz, Roberto Moritz e Ricardo Agrela. O professor Manuel Morais, apesar de não residir na região, contribuiu para o despertar do interesse por estes instrumentos, principalmente pelo impressionante trabalho de edição de partituras para machete e pela investigação realizada sobre os principais músicos do século XIX. Coordenou igualmente duas edições para a Coleção Madeira Música, onde se gravou obras para machete solo, mas também composições muito interessantes de música de câmara. Além destes professores surgiram igualmente nas escolas da RAM um conjunto alargado de docentes que devido ao Gabinete ensinam estes instrumentos nas escolas. O trabalho da Associação Musical e Cultural Xarabanda foi igualmente pioneiro, por ser a associação que começou a chamar a importância para estes instrumentos. Atualmente tem uma escola de música tradicional que tem igualmente valorizado muito estes instrumentos. Finalmente, a recente introdução destes instrumentos no Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira veio trazer um crescimento no estatuto destes instrumentos e irá certamente trazer novos frutos no futuro.

AS - Como gostarias que fosse o desenvolvimento e futuro dos cordofones?
PE - Gostaria que os cordofones passassem a ser o instrumento principal nas salas de aula do ensino genérico, substituindo gradualmente a flauta de bisel ou que pelo menos fosse ensinado de forma complementar a este instrumento. O braguinha, por exemplo, permite tocar melodias e acompanhar o canto com acordes sem grande dificuldade. Temos o problema do custo dos cordofones que é muito superior à flauta de bisel, mas é possível em algumas escolas ter instrumentos suficientes para os alunos desenvolverem a aprendizagem deste instrumento nas escolas, assim queira o professor de música. No plano profissional, gostaria naturalmente que cada vez mais músicos incluíssem estes instrumentospontualmente nas suas práticas musicais e que criassem composições originais e atrativas para os futuros aprendizes. Só com músicos de elevado valor e que sejam vistos pelas crianças e jovens como modelos, poderão estes instrumentos sobreviver num mundo musical cada vez mais competitivo.

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