JM-Madeira por Paulo Esteireiro
Nos últimos anos temos assistido, ao nível nacional, a um movimento de valorização dos instrumentos tradicionais, entre os quais o cavaquinho. Na Madeira, observa-se o mesmo processo de valorização de instrumentos tradicionais, tais como a viola de arame, o rajão e o braguinha, com a vantagem que na região estes instrumentos são ensinados há mais de 30 anos nas escolas do 1.º ciclo do ensino básico e em atividades extraescolares, através da Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia (ex-Gabinete Coordenador de Educação Artística), na Associação Xarabanda, em várias casas do povo e grupos folclóricos e, mais recentemente, no próprio Conservatório. Neste âmbito, algumas questões que mais confusão costumam gerar são as seguintes: Qual a diferença entre um braguinha da Madeira e um cavaquinho do continente? O que distingue um instrumento do outro? Será que o braguinha é tradicional da Madeira?
Atualmente, as semelhanças e as diferenças entre ambos parecem mais ou menos claras. Ambos têm quatro cordas, são instrumentos sopranos (têm uma tessitura mais aguda), as dimensões são semelhantes e têm a forma em 8 da viola. Por outro lado, enquanto que o braguinha da Madeira tem a escala em ressalto sobre o tampo, permitindo assim tocar notas mais agudas, o cavaquinho tem a escala rasa com o tampo, o que facilita a técnica de rasgado nos acordes. As afinações dominantes do cavaquinho são também diferentes da afinação do braguinha, tocando-se os acordes e as escalas de modos completamente distintos. Ou seja, quem toca cavaquinho no continente não consegue tocar braguinha e vice-versa. Até aqui tudo bem. São dois instrumentos com semelhanças, mas com duas diferenças relevantes: escala e afinação. O problema é que, como em tudo, existe uma “arqueologia das palavras” – indo buscar a terminologia do filósofo Michel Foucault –, e onde hoje encontramos diferenças, há poucos anos encontrávamos semelhanças, inclusivamente nas duas diferenças principais acima apontadas. Assim, é possível encontrar, num passado relativamente recente, fotografias de cavaquinhos de Lisboa e de Coimbra com escala em ressalto sobre o tampo, como o braguinha da Madeira, e até com a mesma afinação. A juntar a isso, os cavaquinhos do Brasil e de Cabo Verde têm a mesma escala sobre o tampo e a afinação do braguinha madeirense, embora as dimensões sejam diferentes. A estes dados há ainda que reunir o facto de haver também fotografias de instrumentos na Madeira, inclusivamente do século XIX, com a escala em raso com o tampo, tal como o cavaquinho do continente. É caso para dizer que a semilha é igual à batata e o braguinha ao cavaquinho, ou não?
Chegado a este ponto, e para complicar ainda um pouco mais a história, é igualmente interessante continuar com esta “arqueologia” e procurar esclarecer a história dos termos utilizados para este instrumento na Madeira. Em jornais e livros madeirenses encontram-se, por exemplo, diversos vocábulos aplicados ao braguinha: machete, machetinho, requinta de machetinho, machete de braga, cavaquinho madeirense, cavaquinho, braga e, claro, braguinha. Em 1841, no jornal O Defensor referia-se que Candido Drumond tocou «primorosamente» uma peça no machete e várias «n’um machetinho de sua fábrica, a que se pode chamar requinta dos machetinhos...». Em 1898, um articulista do Diário Popular refere que, num concerto decorrido há algumas décadas, a imperatriz Sissi ficou muito agradada com a «execução em machete – o cavaquinho madeirense», tocado por Amélia Augusta de Azevedo. No Elucidário Madeirense, por sua vez, referia-se que a mesma tocadora, Amélia Augusta de Azevedo, «foi distinta tocadora de machete de braga». Em 1903, o construtor Augusto da Costa criou «um instrumento da sua invenção composto de viola-francesa, barítono, rajão, tímpanos, triângulo, cavaquinho e castanholas». Em 1925, nas Missas do Parto no Santo da Serra, refere-se que a «rapaziada» acordou à «força de castanholas, realejos e bragas […]». Finalmente, em 1929, no Diário de Notícias, dava-se o exemplo de Agostinho Martins como um «distinto executante da braguinha». Em suma, é possível concluir que em menos de 100 anos, o atual braguinha recebeu na região oito nomes diferentes! Esta correspondência entre o braguinha e o cavaquinho faz com que seja menos tradicional da Madeira? É claro que não. As tradições criam-se ou «inventam-se», como diria o historiador Eric Hobsbawm. Assim, enquanto houver tocadores de grande qualidade como Mário André, Roberto Moniz, Roberto Moritz, Guilherme Órfão ou Vítor Filipe e este instrumento for tocado nas escolas, nos grupos de música e nas festas tradicionais, o braguinha terá uma tradição na região e será tradicional… da Madeira.
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