O Abandono dos Deuses | Paulo Esteireiro

JM-Madeira
 Apesar de todas as importantes e inegáveis conquistas sociais e científicas das últimas décadas, ao observarmos em nosso redor parece que vivemos numa sociedade em crise e deprimida. É possível observarmos isso de forma transversal em diversos setores da nossa comunidade, mas também é cada vez mais evidente que a crise vai muito para além do nosso meio envolvente. Basta ver os noticiários e ler os artigos de opinião para concluir que as próprias relações entre estados estão a deteriorar-se a uma velocidade preocupante, inclusivamente na Europa, continente que fazia questão de se afirmar, ao nível de identidade, como um modelo de direitos humanos para o resto do mundo. Esta crise social está bem patente ao nível individual – onde se encontra naturalmente a origem da crise social – e é comum encontrarmos nas conversas do quotidiano uma falta de entusiamo, de chama interna, de motivação e de sentido de causa. Talvez mais do que em qualquer outra época, é frequente observarmos a descrença das pessoas: nas suas competências; na relevância do trabalho que fazem; no seu medo de fracassar; no medo do que os outros possam dizer; na falta de energia e no hábito de adiar as coisas a fazer; na ansiedade que carregam; na crença de que o “problema” é a falta de estímulos externos. Como disse com algum humor o psicólogo norte-americano James Hillman, nos diálogos que protagonizou com o escritor e jornalista Michael Ventura: “já vamos em cem anos de psicoterapia, as pessoas estão cada vez mais sensíveis e o mundo, cada vez pior”. Neste contexto, é curiosa a origem da palavra entusiasmo. Na Grécia Antiga, um “entusiasta” era uma pessoa possuída por um deus ou pela essência do próprio deus. Por exemplo, nas artes, a inspiração chegava aos poetas e artistas através dessa intervenção divina, que garantia o mesmo entusiasmo ou êxtase durante a atuação e na fase criativa. O artista seria transportado para além da sua própria mente, para entrar numa exaltação divina ou fervor poético. Esta teoria divina da inspiração acompanhou o ser humano ao longo dos séculos e foi frequente associar o “entusiamo” a uma oferta dos deuses. É compreensível esta visão, até porque, quer seja nas artes, quer seja em qualquer atividade profissional, quer seja na vida familiar, estamos todos de acordo que o entusiasmo e a motivação são essenciais e alteram de forma muito significativa os nossos resultados. Com “entusiasmo” somos muitas vezes melhores do que pensamos ser. Somos melhores do que meros homens. Mas o que aconteceu a esse entusiasmo? Ou, talvez melhor, porque nos abandonaram os deuses? Para começar, descobrir o que nos entusiasma nem sempre é um processo fácil e imediato. É um caminho que tem de se percorrer e que começa normalmente na confusão do desconhecido. O entusiasmo é, assim, fruto de uma procura espiritual, a qual todos deveríamos realizar diariamente ou, pelo menos, regularmente, se não queremos cair na ausência de sentido, de objetivos. No entanto, quanto tempo conseguimos dedicar a refletir sobre o que queremos ser, sobre o nosso lado espiritual, as nossas relações humanas, a nossa saúde, o nosso processo de crescimento pessoal, o nosso lazer e o nosso conceito de legado. Apesar de serem questões tão importantes, cujas respostas estão na origem do nosso entusiasmo e da nossa força motriz, são por vezes atividades secundarizadas. Não é que não percebamos que são essenciais, mas simplesmente parece não haver tempo e acabamos – é difícil não cair no seguinte “cliché” –, a gastar demasiado tempo e a valorizar cada vez mais aspetos superficiais da nossa existência, alguns dos quais trazem poucos ou nenhuns resultados de uma perspetiva espiritual e de significado para o nosso percurso de vida. Às vezes penso nisso com a seguinte analogia. É frequente os alunos de música estudarem um instrumento musical muitas horas. E é igualmente comum, nos primeiros anos, tocarem as músicas sem “entusiasmo” – ou sem a expressão, a emoção adequada, apesar de tocarem as notas musicais todas certas e com uma técnica brilhante. No entanto, apesar da perfeição técnica, a música soa fria emocionalmente e sem sentido para os outros. Não há comunicação. Faltou a chama, o entusiasmo, o sentido da obra musical, devido à imaturidade do aluno. Do mesmo modo, também uma vida sem lado espiritual, sem entusiasmo, sem reflexão e sem a construção de um legado, poderá ser ziguezagueante e sem significado para os outros. Sem meditação, corremos o risco de ficar sempre nos anos da imaturidade espiritual, em crise pessoal e sem descobrir as nossas causas, a nossa força motriz e o que queremos para o nosso legado. O que vamos transmitir aos que vêm depois de nós? Quais são os nossos deuses?

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