REESCREVER A CIGARRA E A FORMIGA 


por Paulo Esteireiro

Sendo pai de duas crianças, uma das atividades às quais tenho dedicado parte importante do meu tempo é à leitura ou à audição em CD dos contos infantis, ditos clássicos. No entanto, aquilo que deveria ser uma doce atividade com o propósito de fortalecer a relação pai-filho(a) e, simultaneamente, uma viagem às nossas memórias mais recônditas do passado, é por vezes um exercício que traz ao de cima a minha revolta.

A moral dos contos ou, como agora é dito de uma forma moderna, “a psicologia do conto”, parece-me frequentemente de um cariz muito frágil ou mesmo muito duvidoso para ensinar às nossas crianças.

Vejam-se alguns exemplos: no gato das botas, o filho mais novo do moleiro fica rico e casa com a princesa, através de um percurso de mentira constante e da usurpação de propriedade privada alheia, engendrado pelo seu gato (podem considerar que continua atual, mas não é bonito, pois não?); na bela e o monstro, indubitavelmente um mau exemplo de história amorosa a ensinar às nossas crianças, o monstro rapta primeiro o pai e depois troca-o pela filha, apaixonando-se os dois no final (desde quando consideramos o Síndrome de Estocolmo um bom exemplo educativo?); e na Rapunzel, a moral atinge o grotesco e o inimaginável (vender a própria filha, ainda por nascer, a uma bruxa em troca de um legume, devido a um desejo de gravidez...). Sobre a má índole dos contos infantis, creio que estamos conversados.

De qualquer modo, o conto que mais me incomoda – e que é o motivo do presente texto –, é o da cigarra e da formiga. Confesso que sempre que o leio ou o ouço apetece-me reescrever a história. A cigarra canta bem e tem provavelmente um público fiel desejoso de a ouvir. Claro que, como é comum, aparentemente ninguém quis pagar pelo seu trabalho de músico e o desgraçado do bicho, apesar de prestar um serviço essencial, não recebeu nada em troca. É verdade que pouco mudou desde então e continua a existir pouca gente disponível para pagar bilhetes e preferem pedir a um amigo de um amigo para entrar sem pagar (fica mais bem visto quem tem contactos para não pagar do que aquele que apoia o artista da sua comunidade, pagando pelo serviço que recebe). Mas voltemos ao nosso conto infantil e tiremos a conclusão evidente: todos veem e ouvem os concertos da cigarra, mas pagar “está quieto”. Depois, a formiga, em vez de ajudar a cigarra numa hora difícil, demonstrando com humanidade reconhecer o seu valor, ainda diz que cantar não é trabalho e que se ela cantou o verão todo... agora que dance! – E parece-me que também não queria pagar pela dança. Ou seja, até quando queremos ter uma atividade pai-filho proveitosa e significativa, vemos que nos contos infantis a arte musical é desvalorizada.

Assim, proponho que se reescreva a história. A cigarra continua a cantar bem, mas num recinto fechado e a cobrar bilhetes sem “intrusos” a furar para entrar sem pagar. Sempre que alguém precisasse de música, a cigarra só atuaria em troca de um valor mínimo e não faria “dumping” atuando a baixo de um valor tabelado do mercado, sendo punido no tribunal do mocho todos aqueles que rompessem com a lei. Quando a música dela passasse na rádio e na televisão da floresta, os direitos de autor chegar-lhe-iam “direitinho”, podendo assim, no inverno, viver das receitas do seu trabalho. Os responsáveis da floresta apoiariam de forma igual o desporto e as artes (a lebre atleta – que por vezes perde com a tartaruga, como sabemos – receberia o mesmo que a nossa amiguinha cantora). E a formiga passaria a meter-se na vida dela e deixaria de dar palpites porque o importante é valorizar todo o tipo de trabalhos e não apenas quem tirou determinados cursos. Não era melhor e mais equilibrado assim?

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