"Uma encomenda para a Noruega" | Jornal da Madeira

Uma encomenda para a Noruega




Esta semana, uma encomenda de dois livros sobre o instrumento musical madeirense braguinha, para a localidade de Skåla na Noruega, proporcionou-me uma breve reflexão sobre a relevância da investigação para o turismo cultural. A encomenda ocorreu na livraria “areaVIRTUAL” (areavirtual.pt) da associação AREArtística, à qual pertenço, e não foi a primeira advinda do estrangeiro, para onde se tem vendido edições relacionadas com os cordofones tradicionais madeirenses: braguinha, rajão e viola de arame.

Há que referir que esta situação não é de todo uma novidade para as pessoas ligadas aos cordofones tradicionais madeirenses, que sentem e observam há décadas o interesse dos estrangeiros por estes instrumentos. De qualquer modo, é essencial reforçar que a investigação na área das artes e do património é uma fonte de riqueza em muitas cidades e regiões europeias e que na Madeira ainda há muito trabalho a fazer para rentabilizar o nosso património. Se na área dos museus conseguiu-se criar uma rede de qualidade e o investimento feito tem um visível bom retorno, convém não esquecer que por detrás de cada um destes projetos houve um trabalho de investigação consciencioso que permitiu a criação e implementação destes projetos.

É verdade que, nos últimos anos, os cordofones tradicionais têm sido alvo de investigação e de um trabalho editorial inovador, devido à intervenção de uma comunidade interessada, dinâmica e entusiástica. No entanto, à volta destes instrumentos poderão surgir ainda novos produtos culturais musicais, marcadamente de cariz madeirense e com base em investigação histórica na área da musicologia, uma área em que a RAM não tem conseguido aproveitar um enorme património cultural histórico, em proveitos turísticos.

Realce-se que um dos trunfos que a Madeira tem a seu favor é o facto dos cordofones tradicionais estarem relacionados com diversos instrumentos espalhados pelo mundo. Atualmente é possível estabelecer pontes culturais entre a Madeira e os locais onde os madeirenses estiveram ao longo dos tempos e, por exemplo, parte da relevância que atualmente tem o braguinha deve-se à sua relação com o famoso ukulele do Hawaii, instrumento difundido praticamente por todos os continentes. Conhecido em todo o mundo, o ukulele parece ter evidentes raízes madeirenses, sendo uma espécie de combinação entre o braguinha e o rajão. Tem as dimensões e o número de cordas do braguinha e a afinação tem influências do rajão. Relembre-se que o ukulele tem centenas de milhares de músicos amadores no mundo e algumas dezenas de milhares só na Europa. Uma ponte parecida pode ser feita com os cavaquinhos de Cabo Verde e do Brasil ou mesmo com as violas de arame espalhadas pelo espaço lusófono.

Para se perceber a relevância dos cordofones tradicionais na Madeira conto ainda mais dois exemplos. O primeiro, num programa televisivo recente sobre as tradições musicais madeirenses – realizado para a RTP-2 –, o realizador Tiago Pereira denominou o programa de “Ilha dos Cordofones”, apesar da série se chamar “O povo que ainda canta”. Um segundo e último exemplo, no século XIX, o braguinha teve tal sucesso entre os estrangeiros que nos visitavam, que a própria Imperatriz Sissi estudou este instrumento musical com um dos nossos maiores músicos da época, Candido Drumond de Vasconcelos, existindo ainda atualmente fotografias da imperatriz a tocar machete no Funchal.

É necessário criarmos um “cluster” nesta área para ao mesmo tempo que salvaguardamos a memória e a identidade coletiva madeirense, conseguirmos criar uma marca regional turística em redor destes instrumentos. Existe o património e os recursos humanos, mas será necessário igualmente uma vontade política para unir todos os envolvidos. O que se pode garantir é que muitas regiões e cidades do mundo adorariam ser o berço do ukulele mas essa distinção pertence à Madeira. Cabe-nos saber aproveitar a nossa fantástica herança e conseguir fazer aquilo que fez, por exemplo, Salzburgo com Mozart. Hoje em dia a marca Mozart é fruto de grande riqueza e tem um impacto económico gigantesco com a organização de festivais e de uma semana dedicada a Mozart, percursos turísticos, museus, uma fundação internacional Mozart, uma universidade Mozart e até um conjunto de pacotes turísticos Mozart. Até na doçaria isso é aproveitado e existe uma variada pastelaria em redor da figura do compositor austríaco. Quando conseguiremos transformar os nossos cordofones tradicionais numa marca forte?

Paulo Esteireiro
Investigador Integrado do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (FCSH/UNL)

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