"Inteligência desportiva versus analfabetismo musical" ou "por que é que os portugueses sabem tanto sobre futebol e tão pouco sobre música?"

O conceituado linguista, filósofo e ativista político norte-americano, Noam Chomsky, questionava-se há uns anos sobre as causas que levavam os americanos a saber tanto sobre desporto e tão pouco sobre os assuntos políticos mundiais. Como exemplo, mencionava que, por vezes, ouvia rádio enquanto conduzia e que era frequente encontrar programas sobre desporto, em que os cidadãos comuns comentavam, utilizando um discurso bem construído e um manancial de informação impressionante. Por outro lado, dizia que muitas vezes ouvia outros fóruns sobre política mundial, abertos igualmente à participação de cidadãos comuns, e que era habitual ouvir comentários de uma superficialidade preocupante e com base em pouca ou nenhuma informação consistente.
Será fácil transpor esta questão para o campo das artes, e acredito que a generalidade dos melómanos já tenha colocado uma pergunta muito semelhante à de Chomsky, com a devida adaptação: por que é que os portugueses sabem tanto sobre futebol e tão pouco sobre música? Tal como no exemplo do conceituado filósofo norte-americano, em Portugal é possível quase todos os dias ver programas televisivos, e ler nos jornais, opiniões sobre futebol, feitas por amadores e não necessariamente por profissionais, demonstrando uma quantidade de conhecimentos invejáveis, com um rigor histórico impressionante, em que se consegue ir inclusivamente buscar exemplos com algumas décadas. Alguns dos discursos são de uma inteligência impressionante, com argumentos bem construídos e com um entusiasmo admirável.
No desporto, quase diariamente discute-se sobre: táticas (erros ou opções brilhantes); treinadores (capacidade de liderança, escolha acertada de jogadores ou leitura do jogo); jogadores (forma física, qualidades técnicas, interpretação correta das ideias do treinador, articulação entre atletas, etc.); e até custos de bilhetes (relação com a qualidade de vida atual ou determinado empolamento no jogo “x” ou “y”).
Infelizmente, os comentários sobre desporto não têm paralelo com o que acontece no campo da arte musical. E, assim, sonho utopicamente com o dia em que a nossa sociedade e os diretores de conteúdos da comunicação social considerem igualmente importante que a  Orquestra Clássica da Madeira seja notícia regular e motivo de debate. Não seria assim tão diferente do exemplo do desporto acima referido: interpretação musical de determinada peça (erros ou opções brilhantes); qualidade do maestro (capacidade de liderança e comunicação, clareza dos gestos e sinais, escolha de repertório adequado, entusiasmo, musicalidade); qualidade dos músicos (qualidades técnicas, interpretação correta das ideias do maestro, articulação entre membros do mesmo naipe, etc.); qualidade da composição (exploração da variedade de timbres, sequência das secções musicais, qualidade das melodias, expressão ou emoção transmitida em cada secção, texturas e relações entre linhas melódicas e acompanhamento); e, claro, custo dos bilhetes (adequado à qualidade de vida ou ao nível de outro tipo de entretenimentos).
Há muito para debater em torno de uma orquestra e é imprescindível que se consiga dinamizar esse debate. Tal como o desporto conseguiu e consegue motivar paixão entre os cidadãos, levando-os a debater sobre todo e qualquer detalhe em seu redor, é essencial que consigamos dinamizar o debate cultural – e a orquestra é um excelente ponto de partida. Para que consigamos manter uma orquestra ativa, todos os agentes culturais e melómanos têm pela frente o desafio de partilhar nas redes sociais e nas páginas dos leitores as suas opiniões sobre a arte musical, seja qual for a sua ideia. Estranho será que a audição de uma orquestra continue a ser indiferente e que a nossa reação à música, que sai dos dedos e das almas de dezenas de músicos tocando em conjunto, seja indiferente e não obtenha de nós qualquer reação. O nível de qualidade que a Orquestra Clássica da Madeira tem realizado nos últimos tempos merece mais resposta do público.
Paulo Esteireiro
Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (FCSH/UNL)
Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia

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