Entrevista a Mário Vieira de Carvalho


Mário Vieira de Carvalho é Professor Catedrático de Sociologia da Música na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, onde exerceu as funções de presidente do Conselho Científico da Faculdade (1998-2003) e Vice-Reitor (2003-2004), tendo ainda exercido dois mandatos como Presidente da Comissão Científica de Ciências Musicais (1987-1990 e 1996-1998). Ocupou o cargo de Secretário de Estado da Cultura do XVII Governo Constitucional, de 14 de Março de 2005 a 30 de Janeiro de 2008 e é Sócio Correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, 7ª Secção (Sociologia e outras Ciências Humanas e Sociais), eleito na sessão plenária de 19 de Março de 2008.
Tendo em consideração o seu trabalho como Presidente do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), unidade de investigação fundada por si em 1997 e financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, decidimos entrevistar Mário Vieira de Carvalho para saber a sua opinião sobre: (1) a Missão do CESEM após mais de uma década de existência (2); possíveis contributos da Sociologia da Música para a área da educação musical. (3); Os principais desafios colocados aos intervenientes da educação artística nas próximas décadas.

Paulo Esteireiro: O CESEM é uma unidade de investigação de referência no panorama musical português. Depois de mais de uma década de actividade qual é actualmente a missão do CESEM?

Mário Vieira de Carvalho: O CESEM nasceu em 1997 de um projecto de investigação intitulado “Investigação, Edição e Estudos Críticos de Música Portuguesa dos Séculos XVIII a XX”, o qual obteve a classificação de “excelente” no painel internacional de avaliação de Estudos Artísticos da FCT e foi financiado a 100% (500 mil euros). O projecto, que envolvia vários parceiros institucionais, foi executado até ao último tostão entre 1 de Março de 1998 e Setembro de 2000. As metas previstas foram integralmente cumpridas e até ultrapassadas. Como decorre da natureza deste projecto fundador, o CESEM ligou desde logo a sua missão ao estudo, salvaguarda e divulgação do nosso património musical. Mas um dos seus principais objectivos era aprofundar a reflexão crítica sobre a música na sua existência social, os sistemas de comunicação em que ela se manifesta, as questões da produção, da mediação e da recepção. Pretendíamos reforçar substancialmente o diálogo interdisciplinar entre as perspectivas estético-filosófica, histórica, sociológica, antropológica, da comunicação e linguagem, alargar aos estudos de género, enfim, superar velhas dicotomias e compartimentações teórico-metodológicas e promover uma abordagem holística da música.
Ao longo destes anos, o CESEM aumentou exponencialmente a sua massa crítica de investigadores doutorados, mestres, bolseiros de doutoramento e pós-doutoramento, investigadores auxiliares com contrato, colaboradores. Passámos a ser uma unidade de investigação avaliada pela FCT com financiamento plurianual (classificação de “Muito Bom”). Temos um “Laboratório de Música e Comunicação na Infância” e um “Laboratório de Música Eletroacústica”. Estamos agora organizados em cinco linhas de investigação, cada qual com o seu coordenador: “Estudos de Música Antiga” (Manuel Pedro Ferreira), “Música no Período Moderno” (David Cranmer), “Educação e Desenvolvimento Humano” (Helena Rodrigues), “Composição, Interpretação, Experimentação” (Paulo de Assis) e “Teoria Crítica e Comunicação” (Paulo Ferreira de Castro). Estão em curso vários projectos financiados. São frequentes os colóquios e congressos internacionais que organizamos. As publicações da nossa equipa de investigação têm-se multiplicado.
Dir-se-ia que a missão do CESEM, graças a essa massa crítica que adquiriu, se desenvolveu e alargou. Podia, talvez, resumi-la nos seguintes termos: a) compreender melhor a música através do estudo das suas conexões estruturais com os contextos em que ela se manifesta; b) compreender melhor o humano, o social, o político, as “identidades” e as “diferenças” nas mais diversas esferas da vida, através do estudo da música; c) investigar o papel da música (ou, num sentido mais lato, dos estímulos e da interacção sonoros) na educação e no desenvolvimento humano; d) investigar a composição e a interpretação musicais como formas específicas de conhecimento, encorajar a experimentação nesses domínios e contribuir para a formação avançada de jovens compositores e intérpretes; e) estudar, recuperar e divulgar o património musical português; f) disseminar o conhecimento produzido. Queremos envolver-nos cada vez mais em redes de investigação nacionais e internacionais e desenvolver protocolos e outras formas de colaboração com entidades públicas ou privadas.

PE: Ao longo da sua carreira tem sido um defensor da área da Sociologia da Música no seio da Musicologia e dos Estudos Artísticos. Que tipo de contributos pode dar a Sociologia da Música para a área da educação musical?

MVC: Como pode ver-se do programa e dos resumos das comunicações do congresso internacional de sociologia da música que organizámos recentemente (http://www.sociologyofmusic2009.com/), há uma grande diversidade nos tópicos abordados. Também a área da educação musical tem suscitado, naturalmente, uma abordagem sociológica. Embora eu não seja um especialista nesse tópico específico, julgo que posso assinalar alguns contributos possíveis. Desde logo, numa perspectiva histórico-antropológica, o estudo dos sistemas educativos e do papel da música nesses sistemas, procurando captar a sua relação com os processos mais vastos, socioculturais, económicos e políticos, a estratificação social, as ideologias. O próprio conceito de educação musical tem um substrato ideológico que pode ser problematizado. Está ligado a estilos de vida, à socialização primária na família, a um cânone determinado quanto ao que deve ser a música como parte integrante da formação ou da educação. Por exemplo, em contextos coloniais ou pós-coloniais, há grandes diferenças de perspectiva quanto às formas de educação musical canónica. Mas tais debates são, afinal, comuns aos conteúdos da educação em geral. A sociologia da música pode ajudar-nos a ganhar distância crítica sobre estratégias educativas. Ao pôr em evidência, como toda a sociologia, que o conhecimento é socialmente produzido, pode contribuir para que, também quanto à educação musical, sejamos capazes de produzir um conhecimento socialmente mais válido e extrair daí as consequências práticas.

PE: Vivemos numa época de fortes mudanças sociais, que inevitavelmente influenciam a área da educação e das artes. No estado actual do ensino, que desafios se colocam aos intervenientes da educação artística nas próximas décadas?

MVC: A questão é demasiado ambiciosa para poder ser respondida em breves palavras. Há um aspecto que importa especialmente sublinhar: é o de que a arte, em qualquer das suas múltiplas manifestações (incluindo, portanto, a música), é uma forma de conhecimento. Ao comunicarmos através da música, compondo, improvisando, interpretando, escutando, reagindo também corporalmente (inclusive, dançando), estamos a comunicar algo que é diferente daquilo que pode ser verbalizado, dito em palavras. As nossas faculdades sensíveis e intelectuais são mobilizadas de uma forma que não é idêntica à da comunicação lida ou falada corrente. Conhecer por via artística é diferente de conhecer por via científica. São formas de conhecimento, de relacionamento com o real, com os outros, com a natureza, com o mundo, diferentes, mas complementares. Sem educação artística, há potencialidades latentes que não são estimuladas, desenvolvemo-nos como que amputados de uma parte da nossa humanidade. A expressão e a comunicação artísticas permitem-nos expandir a nossa sociabilidade, potenciar o que há de universal no humano, e, ao mesmo tempo, aprofundar a nossa identidade individual e colectiva; abrir-nos aos outros e enriquecermos a nossa vida interior. Nesse sentido, o ético e o estético são inseparáveis. As artes promovem, enfim, aquilo a que se chama a “inteligência emocional”, tão necessária também na vida cívica. Ter consciência da importância da educação artística no desenvolvimento humano e social já é meio caminho andado para tomarmos decisões correctas nesta matéria. Mas, precisamente por que as artes são parte essencial da nossa vida colectiva, e não há sociedade onde elas não floresçam em maior ou menor grau, é preciso ver também a educação artística simultaneamente numa outra dimensão: como oportunidade de desenvolvimento de faculdades e destrezas que podem conduzir a uma profissionalização futura da criança ou do jovem nesse sector de actividade, que tem vindo a ganhar cada vez maior relevância na economia.

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