Do formalismo clássico para o subjectivismo romântico




O Teatro Nacional de São Carlos retoma este ano a actividade musical com a execução “Integral das Sinfonias de Beethoven”. Deste modo, entre os dias 23 de Setembro e 8 de Outubro vai ser possível ouvir, num total de cinco espectáculos, as nove sinfonias completas do compositor.

As nove sinfonias de Beethoven são um dos maiores tesouros artísticos da humanidade. Se é algo discutível considerar o músico de Bona como o maior compositor de sempre, já não é alvo de tanta contestação afirmar, como fez Fernando Lopes-Graça, que Beethoven é o maior «compositor de música instrumental de todos os tempos», sendo o «mestre por excelência da sonata, da sinfonia e do quarteto».



Se hoje em dia a música instrumental de grandes dimensões é bastante valorizada entre o público das salas de concerto de todo o mundo – não se pense que foi sempre assim – tal deve-se em grande medida a Beethoven. Foi Beethoven que expandiu as formas instrumentais da sinfonia “haydniana” para fronteiras longínquas e deu à sinfonia e à música instrumental, pela primeira vez, uma dimensão de grande “porte”, que valeu ao compositor um lugar privilegiado na história, embora também várias críticas às suas obras, tais como: «monstro mal concebido» (acerca da Sinfonia n.º 2); «É muito grande, é absolutamente louco!» (sobre a Sinfonia n.º 5); «Erro colossal do mestre!» (recepção à Sinfonia n.º 9); entre muitas outras criticas.

Este aumento de dimensão da música instrumental deu-se sobretudo devido à exploração que Beethoven fez da designada forma sonata (Exposição-Desenvolvimento-Reexposição). Na exposição, os temas mestre são aumentados de tamanho e simbolismo, e os próprios materiais musicais de transição ganham estatuto de temas musicais com protagonismo na mensagem; no desenvolvimento, os temas vão muito além das meras modulações formais a outras tonalidades, sendo constante alvo de metamorfoses psicológicas em lutas, indecisões e conflitos musicais, aos quais Beethoven por vezes junta ainda novos temas musicais que aumentam o dramatismo criado; a reexposição passa de uma mera e mecânica recapitulação da exposição, para uma secção onde o drama continua a se desenvolver devido às surpresas que o compositor aqui sistematicamente insere; e as secções finais Coda, deixam de ser meras conclusões, trazendo ainda por vezes novos formatos, como é exemplo um dos Codas do finale da Sinfonia n.º 9, onde o compositor após aparentemente ter concluído a sinfonia, ainda introduz uma dupla fuga que funde os temas da Ode à Alegria e o tema de exortação à fraternidade universal.
Mas não foi só no plano formal que Beethoven revolucionou a sinfonia.

Também no plano espiritual as suas obras foram revolucionárias, tendo influenciado todo o romantismo. Como mais nenhum género musical, as sinfonias de Beethoven reflectem bem a transição de um classicismo formal, objectivo, alegre e elegante para um romantismo sem predefinições formais, subjectivo, emocionalmente instável e por vezes mesmo caprichoso. A tradicional divisão da obra de Beethoven em três partes descreve bem esta evolução de uma formalidade objectiva para uma espiritualidade subjectiva, se bem que de um modo não completamente linear: na primeira fase, onde se insere a Sinfonia n.º 1, Beethoven ainda está bastante dependente dos modelos formais de Haydn, sendo considerada uma espécie de adeus ao século XVIII; na segunda fase, enquadram-se as Sinfonias n.º 2 até à n.º 8, onde o compositor vai para além das meras habilidades da forma, incutindo aos seus temas uma forte vertente espiritual e aos desenvolvimentos uma carga dramática – se bem que dentro das formas clássicas; na terceira e última fase, enquadra-se a Sinfonia n.º 9, onde o compositor atinge um alto nível espiritual que, no andamento finale, acaba inclusivamente por ser o responsável pela própria forma do andamento, numa completa demonstração da passagem do formalismo clássico para o subjectivismo romântico.

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